1 ✧ RESTRITO
O
telefone começou tocar enquanto eu estava na cama deitado. Praguejei aos deuses
e resolvi não atender, estava cansado demais depois da última noite. Tinha
certeza que não era nada de importante, só alguém ou minha mãe querendo me avisar:
está muito tarde para continuar dormindo Pedro/Peter, acorda!
Levantei
da cama e fui tomar banho, quando a água gelada caiu na minha cabeça, sai
pulando no banheiro. Havia esquecido que não tínhamos mais água quente. Ótimo,
pensei. Saí do banheiro e fui me arrumar, peguei minha mochila e fui para
escola.
Como
sempre, a escola seria irritante ou essa nova superaria os limites. Estava
morando em Washington, nos Estados Unidos, desde que meu pai sumiu pelo
universo a fora, e fomos custeados pelo governo. Mas não adianta nada, porque parece
que nem água quente existe nesse local.
Chequei
o celular e vi várias notificações de aplicativos, redes sociais e o mais
estranho: ligações restritas perdidas.
Espantei, pois ninguém – mesmo – ligava para mim, e quando ligam, ligam
restrito. Mas não era a primeira vez que este número restrito me ligava, desde
os últimos meses sempre meu celular vibrava, atendia umas vezes, mas ninguém
dizia nada e eu desligava achando que era trote.
O
tempo estava ruim naquele dia, nevava e eu como um brasileiro nato achei tudo
lindo de primeira vista, porém depois que foi conhecer as desvantagens. Meu
lábio já estava ardendo, minhas mãos congelando, mesmo com todas as roupas que
eu estava e sentir minhas bochechas para sorrir para algum conhecido era um
milagre, que eu ainda não tinha dominado.
Entrei
no ônibus rapidamente e sentei na cadeira preferencial, não que eu tenha algum
problema, mas foi a primeira vazia que eu avistei. A viagem para a escola seria
longa...
Peguei
o livro de história e comecei dar uma lida. Pior do que estudar, é estudar em inglês. Sou fluente, moro nos Estados
Unidos há seis anos, porém no quesito estudar e armazenar informações, na
língua materna fica mais fácil. Nas minhas primeiras provas do Sr. Chang,
escrevi as respostas em português, óbvio que ele ficou irritadíssimo por ter
que traduzir e levou o caso para a diretoria, alegando que eu não estava
preparado para saber inglês porque não tinha me desapegado do português. Fiz um
show com o diretor, chorando e dizendo que a minha situação estava difícil e
que ninguém estava me ajudando (tudo mentira) e o diretor Bernstein dobrou
minha carga horária na escola, acrescentando Teatro, Culinária e Fotografia, pelo
argumento de: você precisa se integrar mais com os alunos.
Tomei
um susto quando algo começou a vibrar no meu bolso. Retirei o celular e vi no
visor “RESTRITO”, devia ser um sinal
para eu não ter que estudar. Atendi a ligação.
–
Alô? – disse e todo o ônibus me olhou. Eu estava falando português em meio de vários
americanos.
Ouvi
um chiado do outro lado da linha.
–
Que merda, pare de me ligar! – reclamei.
–
Pedro? – uma voz conhecida ecoou em meu ouvido. Reconheci no momento, era a voz
de meu pai. Meu pai, Joseph, ou José, o grande astronauta que sumiu no
universo. Senti agulhas geladíssimas pinicando em minha nuca, enquanto meus
pelos arrepiavam. – Eu ligo depois, por favor, atenda.
E
desligou.
Fiquei
parado por uns minutos até percebi que havia perdido o meu ponto. Levantei
correndo do lugar e bati na janela. O motorista entendeu que eu queria descer e
resmungou algo abrindo a porta. Pedi desculpas e ele gritou que não pararia
para mim amanhã.
Cheguei
à aula do Sr. Chang atrasado e ele somente bufou por uns segundos, achei que
ele não se importaria, mas começou a dar um discurso sobre responsabilidade e
fazendo comparações sobre o compromisso que os soldados que lutaram nas grandes
guerras tiveram com o nosso de ir às aulas sem chegar atrasado. Senti a direta
com sucesso.
Passei
o resto do dia tendo aulas inúteis, alguns professores somente falando sobre o
tempo, que era o pior que Washington tinha enfrentado em séculos e todos nós
concordando, desenhando nos fichários ou mexendo nos celulares. Pensei na
ligação e na voz parecidíssima com a do meu pai que ouvi. Eu precisava ligar
para minha mãe e avisar. Pedi para ir ao banheiro a Senhora Masp e ela
gentilmente deixou.
Sai
aliviado e fui direto ao banheiro, peguei o celular e liguei rapidamente para
minha mãe.
–
Mãe! – chamei – você pode falar?
O
barulho do fundo estava irritante, parecia que ela estava em um grande show de
rock, porém era o trabalho dela. Ela arrumou um emprego em uma grande empresa
de publicidade que para estimular a imaginação dos empregados fazia de tudo
para descontrair o ambiente. Tinha dias que tocavam pop, tango, e outros dias
que o zoológico mais próximo emprestava gravações de seus animais para tocar,
bizarro, mas de lá saiam as melhores campanhas e os jingles grudentos mais chatos.
–
Sim, pode falar.
–
Um número me ligou restrito hoje e eu atendi. A voz era igual a dele... – não tive
coragem de completar e dizer pai.
–
Dele quem, Pedro? – indagou.
–
Pai – respondi friamente.
Ficamos
em silêncio por alguns segundos.
–
Você deve estar louco – ela disse rindo – ou era outra pessoa e você tinha
acabado de acordar e imaginou coisas.
–
Não, eu não estou louco, era ele sim – afirmei – Eu me lembro da voz dele, ok?
–
Ok Pedro, mas na próxima vez, pergunta quem é primeiro. Alguma coisa mais?
–
Não, só isso – e ouvi alguém gritando Monica no fundo – Preciso ir, à noite jantaremos
noVidalia ok? Tchau.
E
ela desligou.
Saí
do banheiro e enquanto andava pelos corredores da escola, ouvi um barulho muito
alto. O desespero me preencheu rapidamente e abaixei no chão, pensando que
seria um terremoto. Gritos invadiram os corredores e vários estudantes gritando
e tirando os celulares do bolso para gravar o que estava acontecendo surgiram.
Levantei
e segui-os, todos estavam de olho na sala da senhora Masp, esgueirei-me e pedi
licença para pegar as minhas coisas. Alguns dos meus colegas de sala estavam
saindo. Alguns gritavam, outros estavam paralisados com a mão no rosto e uma
expressão de choque, entrei na sala e vi pelas janelas. Uma enorme bola de fogo
estava a alguns metros da sala, um meteoro – como alguns estavam berrando no
fundo - olhei com mais precisão e vi o tamanho, era enorme, queimava e tinha
derretido toda a neve que estava em volta.
Ouvi
“Somos cosplay do Arizona agora?” e alguns
riram. Foi quando houve outra explosão, do outro lado do prédio, corri para
fora da sala e vi: outro meteoro caiu, mas agora dentro da escola explodindo os
armários do outro lado do corredor. Havia alguns alunos feridos e todos
gritavam e ligavam para o socorro. Meu professor de física chegou ao corredor e
deu um grito, estava espantado. Senti a vibração do celular e atendi mais uma
vez o número restrito:
–
Estou? Hello? Alô? Bueno? Oigo? – uma voz feminina falou.
–
Que? – respondi saindo da confusão, tentando me afastar para ouvir direito.
–
Alô? É Pedro Peter? – indagou.
–
Um dos dois, sim – respondi e fiquei desapontado, a ponta de esperança de ouvir
a voz de meu pai mais uma vez se foi.
–
Pedro, Peter, Pedro Peter, tanto faz, irei ser rápida e precisa ok? Necessitamos
de você com urgência – ela disse.
Outra
explosão e o teto tremeu. A escola estava sendo atacada por meteoritos. Sai
correndo como todos estavam fazendo, entrei na sala do almoxarifado e ouvi na
ligação um som estranho, como o som que um carro de fórmula um emite passando
em alta velocidade.
–
Mas quem é você? – questionei.
–
Meu nome é Sky, mais apresentações depois. Sua linha já está habilitada, só
digite asterisco, dois, e jogo da velha e nos ligue, precisamos muito de você.
E
a ligação caiu.
Ri
por um momento. “Meu nome é Sky”, Sky,
céu em inglês, e no mesmo momento ocorrendo uma chuva de meteoros estranha, e
“sua linha já está habilitada” estava eu ligando para operadora de telefonia? Presumo
que não.
A
vida estava tão difícil naquele momento que resolvi arriscar. A chama de
esperança de ouvir e ter informações a respeito do meu pai surgiu novamente.
Peguei meu celular e vi: 59% de bateria. Abri o discador. Apertei asterisco,
dois, jogo da velha. Parei por um segundo e pensei no que eu estava fazendo.
Sendo vítima de um trote, é claro.
Gargalhei
e apertei o botão de ligar.
A
tela do celular mudou completamente. O número *2# brilhava na tela e em vez da
contagem progressiva dos minutos da ligação iniciar, uma regressiva começou.
Trinta segundos. Encarei meu celular e presumi que seria algum bug ou algum segredo da marca que eu não
sabia no momento. Olhei para os altos e não vi nenhuma câmera, eles deveriam
estar bem escondidos e eu passaria em algum programa hoje à noite ou amanhã, pegadinhas
no mínimo.
No
interior de minha mente a voz do meu pai ecoou novamente “Pedro?”. A voz da minha mãe “Você
deve estar louco” e a voz da última pessoa estranha “Necessitamos de você”.
Quinze
segundos.
Eu
já estava rindo por dentro, me imaginando na televisão. Eu em casa, rindo com
minha mãe no sofá e ela dizendo enquanto comia amendoim “Você é muito besta”.
Talvez
depois de todo o país assistir minha pegadinha eu poderia virar uma
celebridade, um viral da internet, ficar famoso. Abri um sorriso.
Dez
segundos.
Aí
talvez o Sr Chang parasse de reclamar comigo, e o Diretor Bernstein retirasse a
grade curricular extensa que eu tinha, porque eu seria uma pessoa importante.
Cinco.
Quero
estar ao menos sorrindo na televisão.
Quatro.
Pelo
menos, quando a fumaça da pegadinha desaparecer, eu preciso estar apresentável.
Três.
Talvez
o apresentador entrasse no almoxarifado com umas buzinas na mão e jogando
confetes.
Dois.
Iríamos
rir e eu daria uma bela entrevista sobre o medo que eu senti e perguntaria como
eles recriaram tão bem meteoritos.
Um.
Zero.
Nada
aconteceu.
Olhei
para o celular, e onde estava escrito *2# havia mudado para “Lua, Domínios de
Sky”, semicerrei os olhos tentando entender, quando a tela ficou branca. A
tela, as paredes, e tudo que estava em minha volta. Meus olhos não aguentavam a
clareza, fechei-os.
O
som se fechou em meus ouvidos como o final de uma música que termina subitamente,
e eu senti cada parte do meu corpo sendo transferida para outro lugar. O medo
de invadiu mais uma vez, segurei o celular com força.
Minha
cabeça começou a girar como se alguém me balançasse loucamente, quando
finalmente a sensação de que a clareza tinha ido, abri os olhos com muita relutância,
imaginando que a equipe de filmagem já estaria me filmando e estaria só
esperando eu abrir os olhos para começarem a gritar e me zuar.
Eu
queria que estivesse certo disso.
Abri
os olhos e vi algo totalmente estranho. Eu estava pisando em um chão cinza,
rachado e cheio de buracos. O céu estava escuro, mas bem no fundo eu via pontos
brilhantes. Não havia cheiro, eu respirava tranquilamente.
Eu
já tinha visto aquilo tudo em filmes, eu estava na Lua.
–
Até que enfim hein, achei que nunca iria fazer a conexão – uma voz masculina ecoou
atrás de mim.
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